domingo, 7 de agosto de 2011

Eu tenho um amigo...

            Eu tenho um amigo. Ele é um dos caras mais loucos e besteirentos que conheço. A despeito de ser evangélico, diz coisas que fazem corar um Ary Toledo. Esse cara é um dos maiores lutadores que conheço, dono de um dinamismo impressionante e uma força de vontade incomum.
            Jesuíno, um grande amigo, mestre e companheiro dos piores momentos. Conselheiro certeiro, mente aberta. Visão aguçada, enxerga longe. Longe até demais!
            Eu o conheci quando fui estagiário na biblioteca de uma empresa de Curitiba. Estava bem acompanhado. Uma chefe metaleira e socialista (que fez de mim um rebelde COM causa), e um colega especializado na manutenção de máquinas da Xerox, transferido para meu setor. Ele é cego. Cego, mesmo, não deficiente visual, como ele mesmo faz questão de frisar. Deficiente visual sou eu, que sou míope!
            Como sou muito tímido, é um pouco difícil para as pessoas se aproximarem de mim. Ele sofreu pra conseguir! Mas, conversa vai, conversa vem, descobrimos afinidades. E aprendemos a respeitar opiniões opostas, já que adoro rock pesado, enquanto ele é evangélico. Mas um evangélico extremamente inteligente, de uma congregação séria. Os preconceitos eram de lado a lado, e com o tempo pudemos desfazer uma série de idéias pré-concebidas. Tornamo-nos amigos de freqüentar casa do outro. Aprendi muito com ele, já que o Jesuíno tem uns 12 anos mais que eu. Ele viveu muita coisa. Perdeu a visão com uns 11 anos, e me explicou que, apesar do que pode parecer para os que enxergam normalmente, é melhor ter noção do que são cores do que ser cego de nascença, de modo à nunca ter a menor idéia dos tons. Aprendi também sobre a linguagem Braille. Impressionante a facilidade com que ele usa aquela máquina de escrever Braille!
            Ainda novo, ele foi para o Instituto de Cegos de Curitiba, onde viveu de forma bastante intensa. Entre histórias de fantasmas e crises administrativas, o velho casarão guarda material precioso que poderia virar um livro. Lá, ele foi uma espécie de líder natural, visto que seu carisma é forte. Perdeu uma namorada, talvez a grande paixão de sua vida, ainda adolescente, o que o afetou muito. Antes desse fato lamentável, ainda tinha sonhos coloridos e com imagens. Sonhos que se tornaram escuros depois do acidente. Mas é um cara que não se lamenta de nada. Ensinou-me a não ter pena de portadores de deficiência e me mostrou de forma prática que um cego vive uma vida tão normal quanto qualquer outra pessoa. Ele mexe com fiação elétrica, instalação de telefones (adivinhem quem instalou a extensão no meu quarto...), entende de mecânica, sabe dirigir, ama a Jovem Guarda, tem uma curiosidade infinita pelas coisas, adora pesquisar... e tem uma moral espantosa com as mulheres! Eu sempre digo a ele: “feio que dói, baixinho, gordinho e ainda por cima cego, e vive cheio de mulher em cima. Afinal, qual é o segredo???”. E ele, claro, não conta o bendito segredo e ainda cai na gargalhada. Eu continuo na seca e ele faz o que bem entende da vida! Um dia ele vai ter que me contar o segredo...
            Nem todo mundo acredita que o cara é cego, mesmo. A ex-esposa dele vivia fazendo testes e armadilhas, para se certificar da cegueira do marido. Ela não acreditava. Um dia, estávamos nós andando (eu estava acompanhando-o até o ponto de ônibus... aliás, como o cara anda rápido!), quando, subitamente, ele desvia de um galho de árvore há 10 centímetros de sua face! Naquele dia, cheguei à conclusão de que se tinha algum cego ali, era eu!
            É aquele tipo de pessoa que não desiste nunca do que quer, a ponto de dar nos nervos. Quando todo mundo já desistiu de fazer alguma coisa, ele continua em cima. Mexe com informática, aprende rápido, estuda programação, utiliza programas de voz (DosVox, por exemplo), e definitivamente não conhece a palavra derrota. Não é demagogia nem nada, eu apenas fico impressionado. Quantas vezes reclamamos da vida, disso, daquilo, ai que dor, ó vida, ó azar, e temos exemplos como ele, bem como exemplos de tantas outras pessoas com diversas deficiências, que se superam de maneira magistral? Aí, fico até envergonhado quando me lamento ou desisto de algo.
            Desnecessário dizer que a audição dele é excelente. Uma forma de compensar a falta de visão, os demais sentidos são bem desenvolvidos. Não precisa ir mais de uma vez a algum lugar para aprender o caminho e seguir sozinho quando quiser.
            Um cara extremamente inteligente, que nos anos 80 foi um legítimo pinguço (deixou o álcool quando se converteu), daqueles de passar a noite nas praças curitibanas! Não sei porque, mas acho que muito do lado sensível e inteligente vem justamente da deficiência. Ele acabou desenvolvendo certas características em função de sua condição física.
            Outra característica marcante é o lado “contador de histórias” dele. Adora contar histórias as quais viveu, especialmente de fantasmas e coisas do gênero, e eu sou ótimo em ouvir essas delícias! Curitiba é uma cidade pródiga em casarões “assombrados”. Trabalhei em pelo menos quatro empresas lotadas de lendas, lendas urbanas que passam de geração em geração e chegam aos nossos dias ainda com um tanto do sabor original.
            Além desse meu amigo, uma palavrinha sobre um colega. Um cara que se formou em Filosofia. Paraplégico, de carisma incomum, o maior fã de Elvis Presley que conheci. Tinha algumas manias curiosas. Passava umas duas horas arrumando o topete antes de ir para a faculdade, e descia as rampas da UFPR – Universidade Federal do Paraná (sim, lá tem rampas, não escadas, o que facilita muito o acesso de pessoas com cadeiras de rodas) em alta velocidade,  e utilizando uma estridente buzina para pedir licença aos demais! Era cômico ver o cara quase voando pelas rampas, buzinando e filosofando. Legítimo “maluco beleza”.
            A deficiência está no coração das pessoas. Nas atitudes infelizes de seres destrutivos, que preferem boicotar o mundo a fazer dele um lugar mais tolerável.
            Precisamos é de pessoas inteligentes e de coração (espiritualmente) saudável. A experiência de conviver com pessoas como esses dois malucos que citei foi ótima e me ensinou muito, inclusive sobre caráter. Só tenho a agradecer.
            Abraços a todos os leitores

Texto originalmente escrito para a Rede Saci, em 2006

2 comentários:

  1. Seus textos são simplesmente maravilhosos!!!
    Não encontro mais palavras para expressar minha admiração... rs Só posso dizer: Putz! ou Uau.. rs
    Beijos

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  2. Seu blog também está de parabéns. Sobretudo por esse texto, já que eu sou pesquisadora do discurso da inclusão, mais especificamente das pessoas com deficiência. Textos como esse fazem falta na blogosfera, e no mundo...

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